Quase todos os jogadores do Dínamo de Kiev voltam de pequena folga para reiniciarem a pré-temporada, que terá uma viagem aos Alpes austríacos. Entre eles não está, por exemplo, Andriy Shevchenko, ídolo máximo da Ucrânia, e que ainda não definiu sua possível aposentadoria após a disputa da Eurocopa 2012. Sem sequer jogar, os atletas recebem uma quantia recheada de dólares das mãos de um dos mandachuvas. Uma remuneração comum no país, usada para burlar o Fisco. É o primeiro contato dentro do Centro de Treinamento do clube mais tradicional de um país que diverte, principalmente, um trio brasileiro com o que tem a oferecer.
Dudu, Danilo Silva e Leandro Almeida: brasucas no Dínamo de Kiev (Foto: Victor Canedo / Globoesporte.com)
O trio, na verdade, é um quarteto. O meia-atacante Dudu, ex-Cruzeiro, o lateral-direito Danilo Silva, ex-Internacional, e o zagueiro Leandro Almeida, ex-Atlético-MG, sentem a ausência do zagueiro Betão, ex-Corinthians. No Dínamo desde 2008, o defensor viaja com a esposa e tem moral o suficiente para encontrar-se com os companheiros apenas em Innsbruck. Quando juntos, eles formam uma família que tenta amenizar as diferenças – e a distância – do Brasil na capital ucraniana.
Há, como sempre, o lado bom e o ruim. E a esperança no que se refere ao legado da Eurocopa. Bonitos estádios já são uma realidade. Faltaria o Campeonato Ucraniano ganhar o reconhecimento que almeja com os milhões já investidos.
– Desde que cheguei aqui eu escuto falar que o futebol vem melhorando. Antigamente era apenas Dínamo e Shakhtar, batiam em todo mundo, como Barcelona e Real Madrid no Espanhol. As equipes menores estão crescendo, fazendo melhores contratações, investindo mais. Tenho essa visão de que, com a Eurocopa, o país vai aproveitar o embalo – disse Danilo Silva, sem esquecer do preconceito ainda presente no país.
– O Betão já passou por alguns apertos. Uma vez uma criancinha passou perto e disse: “Olha lá, vovó, o negro sabe falar russo”. Ele já sentiu algumas coisas.
A temperatura, no entanto, é algo que já não mete tanto medo assim. No auge do inverno, entre dezembro e janeiro, ou os jogadores estão de férias ou em pré-temporada em outro país europeu. O que não quer dizer que não sofram com o frio e suas consequências.
– No ano que cheguei já fomos jogar em um campo lotado de gelo. Pensei: “Deve ser legal dar um carrinho”. Minha coxa ficou toda arranhada. Era dezembro, a última partida antes de ir para as férias. Achei que dava para escorregar, mas nada. Travou tudo, fiquei todo queimado. E aí fui piada entre os amigos no Brasil quando fomos à praia. Perguntaram se eu tava é jogando na terra (risos) – contou Leandro Almeida.
Essa é apenas uma das histórias do antigo defensor do Galo. Com algum tempo de casa, ele já foi até rival de Shevchenko num torneio de pôquer online – e teve de fugir da sala por conta das altas apostas. Dudu, o mais comedido, estranhou de início a forte marcação ucraniana, seja em treinamentos ou jogos, e destacou o “sacrifício” que é voltar de Goiânia no fim das férias.
Confira a entrevista abaixo:
Danilo Silva em treino do Dínamo de Kiev: aposta
no legado da Eurocopa (Foto: Victor Canedo)
Eurocopa, Ucrânia e o povo
Danilo Silva: Acho que a ideia é de que a cidade melhore. Já houve uma maquiada em função de transporte, que era bem precário. Os ônibus, alguns muito antigos, foram trocados, está tudo mais novo e melhor. Sobre a questão de recapeamento da cidade, mudou bastante coisa. E essa parte de construções mais modernas, principalmente na área central, prédios mais novos surgiram. Só espero que não tenha sido apenas uma maquiada.
O povo tem um pouco de preconceito, ainda é fechado, frio, aquele estereótipo do europeu. Eu não sofro tanto com o racismo, mas o Betão já passou alguns apertos. Uma vez uma criancinha passou perto e disse: “Olha lá, vovó, o negro sabe falar russo”. Ele já sentiu algumas coisas.
Campeonato Ucraniano
Danilo Silva: Desde que cheguei escuto falar que o futebol vem melhorando. Antigamente era apenas Dínamo e Shakhtar, que batiam em todo mundo, como Barcelona e Real Madrid fazem no Espanhol. As equipes menores estão crescendo, fazendo melhores contratações, investindo mais. Acredito que, com a Eurocopa, o país vai aproveitar o embalo.
Leandro Almeida: Até mesmo o mercado vai melhorar. Já está grande no que diz respeito à vinda de brasileiros para cá. E acho que vai melhorar depois da Euro. Muitos brasileiros quando falam de Ucrânia, Rússia… Todos já pensam no frio. Mas se você chegar, se adaptar e começar a jogar, é muito legal. Aí você esquece do frio, das dificuldades. Meu caso foi esse. Parece que você convive melhor com os jogadores do clube, essas coisas. Espero que a Euro mude essa visão de alguns.
Danilo Silva: Todo mundo que assina o contrato pensa no lado financeiro. Mas quando você chega e começa a jogar, tem outra impressão. Champions League, Liga Europa… São outras oportunidades. A parte financeira claro que interessa, para sair do Brasil e ter a sua independência. Mas também, aos poucos, conforme chega aqui e vê o futebol crescendo… Vale a pena.
Shakhtar foi o campeão ucraniano da última temporada (Foto: Divulgação)
Histórias curiosas
Danilo Silva: Tem uma história que o Betão usa para brincar com o pessoal daqui, que é muito frio e rude. No supermercado, geralmente precisa comprar a sacola se precisa dela. A pessoa pergunta, só que não tem muita gentileza. “Você precisa de uma sacola?”. “Você tem cartão de desconto?”. Tudo gritando. E isso é mulher, por causa da cultura. Muitas vezes a gente dá até risada pela grosseria que eles têm, assim de vivência, desse pós-guerra, dos avós.
Leandro Almeida: O dia que o doutor foi dar injeção num zagueiro grandão do nosso time. Quando estávamos na Champions, o treinador obrigava a tomar injeção de vitamina antes da partida. E nós não gostávamos, não, doía muito. Era um doutor mais de idade. E ele treme muito, aí eu entrei na sala e quando o vi… “Não vou, não”, pensei. Vou esperar o outro ir. Vou conferir ele tomar a injeção, para ver como iria reagir. Estava preparando a seringa dele, vou deitando… De repente o doutor deu uma agulhada na costela dele (gargalhadas). Pegou no osso em cima, mas eu ri tanto, saí fora da sala correndo.
Leandro Almeida: E outro caso parecido foi no dia em que iria comprar o carro. Só que eu não queria treinar porque a agência iria fechar. Disse que tinha comido alguma coisa que não fez bem, saí fora rápido para pegar o meu carro. “Doutor, não estou me sentindo bem”. “Então espera um pouquinho”, ele respondeu. Pensei “Que bom, não vou treinar não”. Passou um tempinho e ele me chamou lá na sala de injeção. “Deita aí”, disse. Não é possível que vai vir aplicar a injeção. Chamou o doutor de idade, pediu para esticar o braço para tomar soro na veia. O tradutor nosso chegou, e eu perguntei o que ele iria fazer. “Ele vai aplicar soro na sua veia”. Quando eu vi ele vindo com a agulha tremendo, me levantei da maca correndo. “Não vou tomar isso, não, vai rabiscar o meu braço todo” (risos). “Não, senta aí que é tranquilo”. Sentei de novo, não queria olhar. Quando vi de novo o doutor tremendo, foi a gota d’água. Não dava. Mas chegou o outro doutor e pronto. Acredita que fiquei mais de uma hora tomando soro, mais tempo que se tivesse treinado. Acabou o treino e não consegui pegar o carro.
Leandro Almeida: Na Alemanha, o Bertoglio (atualmente no Grêmio) foi fazer a cirurgia no tornozelo e ficou torto. O pé dele estava um pouco mais abaixado que o outro. O doutor queria operar o bom para chegar no ruim, disse que a cirurgia foi legal (risos). Chegou a minha vez, estava com problema de púbis. Ele não tinha os braços e queria aplicar a injeção com o braço de borracha. “Não, não vai”. Passei perrengue.
Leandro Almeida comemora gol pelo Dínamo de Kiev: sinal de ‘bicho’ (Foto: EFE)
Bicho
Leandro Almeida: A coisa que é bacana aqui é a premiação. Dependendo do dia, o presidente se empolga e até dobra. Teve uma partida que ganhamos de 9 a 0, e ele se empolgou. Se a gente está na Liga Europa, Champions, às vezes ganha mais bicho do que o próprio salário. Isso para quem joga é excelente. Não tem do que reclamar. Pode ter o frio que for, porque é excelente para quem tá jogando.
Danilo Silva: Para as menores equipes há um valor. Para médias, outro. Para grandes, um outro. Para Champions, mais um diferente, e por aí vai. Mas, normalmente, quando é mais Shakhtar, o bicho é bem alto. Nós batemos recorde no Ucraniano na última temporada (9 a 0). Quando ele está muito contente, a galera dá um grito para dobrar o bicho, e às vezes ele dá. Geralmente é assim, são boas gratificações.
Inverno
Danilo Silva: Hoje eu prefiro jogar no frio. Frio que digo é ali entre zero e dez graus. Eu me sinto bem nessa temperatura, até zero, porque o desgaste é menor. E a parte de frio mesmo aqui, geralmente o inverno brabo, é dezembro e janeiro, chega a -30ºC. Chegou a bater recorde numa época que não estava aqui, -40ºC. E no verão faz 40ºC, o oposto. Quando está muito frio evitamos sair, só mesmo para restaurante, shopping, lojas.
Leandro Almeida: Nessa época bem rigorosa não estamos aqui, mas sim no Brasil ou na pré-temporada. Para treinar é tranquilo: calça, três blusas de frio, touca. Mas para sair na rua dá preguiça. Tem que ser assim. Quem sofre mais são nossas esposas, sempre dentro de casa. E querem sair, pois ficar só em casa não dá. Quando é jogo assim que é ruim, blusa e roupa térmica por baixo, aí sente frio mesmo. Quando vi pela primeira vez a neve foi demais, treinei com a bola laranja. No primeiro ano que cheguei já fomos jogar em um campo lotado de gelo. Pensei: “Deve ser legal dar um carrinho”. Minha coxa ficou toda arranhada. Era dezembro, a última partida antes de ir para as férias. Achei que dava para escorregar, mas nada. Travou tudo, fiquei todo queimado. E aí fui piada entre os amigos no Brasil quando fomos à praia. Perguntaram se eu estava é jogando na terra (risos)
Dudu: O pessoal do Brasil acha que são os 12 meses de frio. Toda época alguém pergunta se está frio. Não é verdade.
Shevchenko
Danilo Silva: Ele conversa com a gente quando necessário. Lógico que tem ligação mais forte com ucranianos, pois jogam na seleção com ele. Até conversa, o relacionamento é tranquilo, mas ele é a grande estrela do país, não tem como negar. Se eu começar a cornetar não vai ficar legal (risos).
Leandro Almeida: Ele foi o cara da Ucrânia, no Milan, mas pela idade não rende tanto dentro de campo. Às vezes até fica no banco, nem sempre é titular. Mas tem que respeitar o que foi. Quando tem a oportunidade ele brinca conosco. Que nem um dia quando fui jogar pôquer, entrei na sala e não podia. Tinha um muito próximo, cheguei e anotei o nome do cara. Perguntei para o Betão, e era ele. Quando estou jogando online, estou “benzão” e vejo que ele está entrando, eu já saio fora. Está doido, esse cara tem dinheiro demais (risos). Faz propaganda e tudo. O meu apelido é macaco azul. E direto ele fica brincando no treino. Gosta muito do Dudu também, brinca direto.
Shevchenko comemora gol pela Ucrânia nesta Euro 2012: ídolo máximo do país e do Dínamo (Foto: Reuters)
Dínamo x Shakhtar
Danilo Silva: O Dínamo contrata mais a parte defensiva. Dudu e André até vieram pra cá. Mas é diferente, porque no Shakhtar são mais atacantes, se entendem mais pela filosofia do treinador. Acontece muito de o Shakhtar ter uma comunicação legal na frente por serem todos brasileiros, faz parte do estilo de jogo. Aqui até mesmo pelo Dudu, ele sofre muito, pois tem nigeriano na frente, mais dois ucranianos, ou um croata e um ucraniano. É uma comunicação que leva tempo para encaixar certinho. Essa questão do Shakhtar fazer esse bom campeonato na Champions e tudo, acho que mostrou uma boa imagem para o Brasil. Até mesmo pelos jogadores, o Jadson, que voltou para o São Paulo, por exemplo, e outros tantos. Isso valorizou muito e deu um marketing muito grande para o Brasil. O dono do clube é o cara mais rico da Ucrânia. A gente tem a melhor defesa, e eles, o melhor ataque. Só que acontece de o nosso ataque não marcar tanto, eles levam vantagem nisso.
Leandro Almeida: Marketing é maior porque sempre tem brasileiro fazendo gol, mostrado na mídia. Aqui no Dínamo, como é defensor, é mais difícil, é apenas um ou outro. E hoje em dia, se for comparar, o Shakhtar está levando vantagem em cima da gente. Nós nos igualamos, mas permitimos uma brecha na reta final. O que vale é o confronto direto, não à toa já colocam na reta final para dar um clima de decisão, fazem de propósito.
Saudade do Brasil?
Para Dudu, voltar do Brasil é um sacrifício após as
férias (Foto: Victor Canedo / Globoesporte.com)
Danilo Silva: aquele feijãozinho que a gente traz, tem que trazer algumas coisas. Mas à parte de família, são as condições. Assinamos contrato, somos profissionais, tem que trabalhar.
Dudu: Quando vou ao Brasil, é um sacrifício para voltar. Sofro muito. Mas é primeiro ano, é assim mesmo.
Leandro Almeida: Sempre trago uma malinha cheia, com refrigerante e um monte de negócio. E na temporada passada trouxe meu cunhado e dois amigos do Brasil para conhecer um pouco aqui. Até muda um pouco, mostra o que a gente passa por aqui. Temos a oportunidade sempre de, no meio do campeonato, o treinador dar três dias de folgas. Dá para passear pela Europa. Essa temporada no início que é o bacana, temos duas ou três folgas, conhecemos outros países, bem bacana. Paris, Roma, esses lugares todos.
Volta ao futebol brasileiro?
Leandro Almeida: Acho que a questão é mais se o jogador está atuando ou não. O Danilo, desde que chegou, está jogando. Pensar em voltar, só se for caso de ter um filho. Estou respondendo por ele, mas é mais ou menos isso. Se está numa sequência de jogos, se está jogando, não tem por que voltar. Lógico que se aparecer um clube bacana, uma boa proposta… Eu não descarto voltar ao Brasil, não. Se o time acertar com o clube e comigo, eu vou. Brasileiro é muito fera. A gente assiste às partidas do Brasileiro e vê o quão é diferente. Até a transmissão do canal é diferente, diferença na narração. Aqui grita gol, rola uma empolgação do futebol brasileiro.
Às vezes, a galera aqui fica vendo jogos lá do Brasil. O meio-campo recebe, pensa, tem espaço, e perguntam se não vai chegar no cara. Eles ficam doidos. Lá no Brasil ele domina, olha, toca… Aqui não. Se dominou a bola tem que ir em cima. Uma vez foi até engraçado, dominei de peito, letra, só toque bonito. O cara deu um carrinho em mim e recebeu os aplausos. Saí dele, e o treinador aplaudiu o cara que deu o carrinho. Vou correr mais não (risos). É cultura mesmo.
Danilo Silva: Vejo por um lado que é um ciclo. Você está aqui, a partir do momento que vê que não chegou ao fim, vai continuando de acordo com as dificuldades. “Opa, está na hora de voltar”. Lógico que se pintar oportunidade muito boa, que compense voltar, eu volto. Mas é muito difícil fazer negócio com os ucranianos, russos. Acertando um acordo, não tem problema. Futebol é igual, regras são iguais, mas o estilo de jogar é diferente. Futebol brasileiro é tranquilo, sente essa parte mais tranquila, dinâmica quanto aqui. É muito para frente. Não tem aquela cadência e muito contato.
Fonte: http://globoesporte.globo.com
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JGalvão